quarta-feira, 28 de outubro de 2015


空手着

O karategi


Um contraste muito interessante é a variação, uso e conteúdo filosófico do dogi, o kimono apropriado para a prática de cada arte marcial.
Quando praticava judô há anos atrás, ao ir comprar um judogi novo sempre observava como os kimonos de karatê eram diferentes. 

Nas lojas especializadas de esportes sempre me chamavam a atenção aqueles kimonos mais leves, feitos de lona fina ao invés de trançados, e com um corte mais voltado para permanecer elegantemente no lugar do que para servir de pegada.

Nas artes marciais baseadas em projeções e técnicas que envolvam submissão do oponente, o kimono é, além de vestimenta, uma ferramenta. É nele que se desenvolve a maior parte das técnicas de pegada e domínio de membros, sobretudo na luta em pé (Tachi-waza). Nas disciplinas baseadas em atemi-waza, golpes traumáticos, o keikogi é muito mais uma distinção, uma vestimenta que confere identidade e ensina, do que propriamente uma necessidade. 

Em Okinawa, antes de o Karatê chegar ao Japão, não se utilizava nenhuma vestimenta definida para a sua prática. Usava-se normalmente os kimonos peculiares à cultura nipônica da época, de preferência peças que possibilitassem maior movimentação, não havendo também qualquer sistema de graduação ou faixas coloridas.

Foi quando o mestre Gichin Funakoshi, já no Japão, em suas trocas de conhecimento com Jigoro Kano, percebeu que o judogi adotado por Kano na Kodokan poderia ser facilmente adaptado para a prática do Karatê, o que também contribuiria para que os praticantes não fizessem qualquer distinção de classes (o que ainda era comum no Japão) através do vestuário. Da colaboração entre os dois mestres surgiu, portanto, o karategi como uniforme, adotando também nessa época os princípios dos sistemas de graduação.

Consta também que uma outra razão foi que, para melhor difundir o Karate-do, vindo de Okinawa, o mestre Funakoshi procurou adotar o karategi em sua escola como forma de se adequar às imposições da Dai Nippon Butoku Kai, instituição que regulamentava as artes marciais no Japão.

Uma curiosidade é que, na verdade, não é adequado chamar o judogi ou o karategi de "kimono" (着物, literalmente "vestimenta" ou "coisa de vestir"), apesar do uso freqüente dessa palavra que na realidade denomina qualquer vestimenta no ocidente; esses uniformes são chamados em japonês de "keikogi" (稽古着 ou 稽古衣), isto é, uniforme de treino.

 O karategi no estilo Shotokan-Ryu é tradicionalmente branco, desprovido de detalhes, e começou a ser utilizado por volta dos anos 20. Os primeiros karategis "padronizados" provavelmente foram os fabricados pela Tokaido, fabricante japonesa que iniciou a produção há 59 anos.

Osu


segunda-feira, 26 de outubro de 2015



生徒 

O caminho do aprendiz


Pisar num dojô novamente desta vez foi uma experiência bem diferente. Em todas as vezes em que eu voltei a treinar Judô, eu sabia o que tinha que fazer, e o único obstáculo era estar fora de forma e destreinado.
O primeiro treino de Karatê foi muito bom, eu não tive dificuldades de fazer a maior parte dos movimentos, mas ainda um tanto desajeitado e sem me localizar ao tentar fazer o kata Heian Shodan, o primeiro que é ensinado na escola Shotokan-Ryu.

Curiosamente, eu tive alguma dificuldade em levantar a perna para aprender a chutar, o que é normal pois nunca havia treinado chutes na vida. Mas na realidade o que o que mais me incomodou foi... a dor nos pés. Eu não sabia sequer pisar no chão corretamente ao fazer as bases baixas características do estilo Shotokan, pisava com força no assoalho de madeira que em nada lembrava os tatames onde eu havia aprendido a fincar os pés desde garoto, e terminei os dois primeiros treinos com a sensação de que meus pés eram tenros, como de criança. Ao final do terceiro treino isso já não incomodou tanto pois eu já estava mais habituado e já pisava de maneira mais correta ao executar os movimentos.

Numa primeira leitura, pode parecer até engraçado que um cara adulto se queixe de dor nos pés ao fazer algo tão simples como um treino de Karatê como faixa branca, mas é nessas pequenas coisas que reside a superação: iniciar numa arte marcial é como voltar a ser criança. Você terá que reaprender tudo, começando por como se equilibrar e caminhar. No processo, você cairá, se machucará, sentirá dor, como acontecia ao aprender a levantar-se e caminhar. Nem sempre conseguirá fazer de imediato o que lhe é exigido pelo Sensei, e muita coisa que aparentemente é fácil, as bases baixas, a posição do corpo e dos membros, a postura ao golpear, a posição dos pés em cada técnica, etc. não são; é necessário todo um aprendizado para que se consiga atingir a prática. Mas ao final de cada aprendizado, você estará mais forte. Isso é especialmente verdadeiro nas artes marciais.

Daí a etimologia do termo Sensei: "Sensei" a rigor significa "nascido antes", ainda que seu professor seja mais jovem do que você.

No mais, a sensação de voltar a ser um aprendiz está sendo fora de série. Inclusive, a prática diária do Karatê-Dô me trouxe de volta o estímulo para retomar os estudos de filosofia oriental e mesmo da língua japonesa, que eu havia estudado algum tempo quando adolescente.

O treino é quase uma meditação, quando a mente está imersa nos movimentos. A busca do movimento perfeito é um grande fator de relaxamento mental e de reflexão, que ressoa em toda a compreensão do mundo ao redor. Assim como no Kyudô, a arte japonesa do tiro com arco, concentrar-se completamente no tiro é um objetivo que está para além do mero acertar o alvo, no Karatê-Dô é possível observar um aperfeiçoamento da mente do aprendiz ao concentrar-se, treino após treino, na perfeição dos movimentos ao invés de simplesmente repetir mecanicamente cada técnica. Observo isso sobretudo nos treinos de Kihon e ao aprender o primeiro Kata.

Osu



円相

Esvaziando a xícara.

Este blog foi criado com o objetivo de documentar e compartilhar as minhas experiências como aprendiz de karatê após os 35 anos, vindo de uma outra arte marcial igualmente rica em disciplina e conhecimento, mas essencialmente bem diferente.

Fui judoka desde criança, me iniciei nos tatames aos 6 ou 7 anos, lembro até hoje do meu primeiro kimono, um Nakano. Nunca esqueci os dizeres da etiqueta: "Quem teme perder já está vencido". Tive o privilégio de ser aluno de um grande Sensei, hoje 6º Dan, extremamente respeitado e até hoje meu amigo. O judô me acompanhou durante toda a vida, até agora. Quando tinha 17 anos, deixei os treinos para me dedicar à universidade, e periodicamente voltava a treinar, mas por outras razões que variavam, volta e meia deixava os treinos novamente. Nessas idas e voltas, também experimentei alguns treinos de Jiu Jitsu e Boxe, nos inícios dos anos 90, antes mesmo de "entrarem na moda", serem praticados por muitas pessoas e de maneira mais voltada para o condicionamento físico.

Porém, eu sempre tive curiosidade de praticar o Karatê. Quando criança, minha família não aprovava a idéia, pois meu pai também havia sido judoka, aluno de professores japoneses no Rio de Janeiro do início dos anos 70, e além disso meus pais consideravam o Karatê uma arte não suave. Posteriormente, quando eu já possuía idade suficiente para tomar minhas decisões, já estava bem graduado no Judô, no final estudando para o exame de 1º Dan, e sempre que me dispunha a voltar à prática de arte marcial, me condicionava a fazê-lo voltando àquele dojô. Da última vez que voltei, simplesmente não me adaptei às novas regras que vinham sendo impostas, as proibições de ataques diretos de mãos às pernas, uma série de restrições de pegadas no kimono, e a visão quase que exclusivamente competitiva, olímpica. Isso não desmerece em absoluto o esporte, mas eu sentia falta de uma prática mais tradicional, mais marcial no sentido estrito do termo, o que se somou ao fato de eu estar tendo lesões nos treinos com freqüência, ao ser projetado.

Demorou bastante. Anos. Décadas. Mas finalmente me chegou à mente a pergunta que faltava: "Afinal, por que não treinar Karatê?".

Mesmo cheio de dúvidas sobre minhas próprias aptidões sobretudo pela idade, uma vez que já não me considero tão jovem para iniciar, busquei então um dos professores mais reconhecidos da cidade, talvez o mais experiente (buscar um Sensei preparado, que tenha uma boa mentalidade e um dojô regular e federado é fundamental em qualquer arte), e me matriculei em sua academia, da qual eu sempre ouvira falar. O Sensei me recebeu com muita cordialidade, esclareceu minhas dúvidas e a partir de então eu começaria a treinar com ele.

Me lembro que desde os primeiros passos no judô havia duas academias principais na cidade; ambas ofereciam musculação, aeróbica, etc. sendo que uma delas oferecia o judô, onde iniciei nessa arte, e a outra karatê, ministrado por esse mesmo professor, que viria a ser o meu Sensei. A curiosidade era grande, de pisar naquele assoalho de madeira corrida e lustrosa, tão diferente dos tatames verdes de palha que então ainda se usavam, assim como as duas artes são bem diferentes entre si. Pelo visto, eu estava mesmo destinado a treinar ali; aproximadamente 30 anos depois.

Na adolescência, havia lido um livro chamado Zen in Martial Arts, de um escritor americano chamado Joe Hyams, que fora aluno de Ed Parker, Bruce Lee, Bong Soo Han e outros mestres que se estabeleceram nos Estados Unidos nos anos 70. Num determinado capítulo, ele conta como Lee lhe falara da máxima Zen "esvazie sua xícara, ou não poderá enchê-la com chá novo". Foi o que fiz. Mesmo bem graduado no Judô, me dispus a esvaziar a xícara e voltar a usar uma faixa branca, retornando ao início e iniciando um novo ciclo de aperfeiçoamento através de uma arte marcial nova para mim. Um novo ciclo desta vez não de retorno a algo conhecido, mas sim de um novo ponto inicial, como o círculo que é estudado no Zen.

Daí a imagem deste post. Ensō (円相), é uma palavra japonesa que quer dizer círculo, símbolo associado ao Zen Budismo.Esse símbolo engloba as idéias de iluminação, força, elegância, o universo e o vazio, sendo uma ilustração típica da estética oriental, sobretudo japonesa. Tudo volta ao início, e o vazio é necessário para que se atinja a iluminação pelo conhecimento.

Osu